sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Não era a mãe quem realmente o atormentava. O que o perturbava era a sombra tutelar da mãe. A sombra que ele julgara ter sido realmente a sua mãe.

De raspão

Qualquer coisa , ainda agora , ficou lá trás no tempo. Impossível recuperá-la mesmo com um esforço suplementar de memória. Ponho nas coisas palpáveis a origem dessa "perda": será que a torneira ficou fechada , a luz desligada , a fogueira apagada , ... e assim por diante. Mas o que perdi , o que deixei lá a trás foi um pensamento ou uma sensação provocada pelo espaço físico onde me encontrava ou , ainda ,  um sentimento nascido da interacção com as pessoas presentes que sou agora incapaz de recordar , de interiorizar, de expressar. Sentimentos , sensações , percepções , impressões . Como as penas. Quase imperceptíveis Mas marcantes

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Encontro com o passado

Já passava bem das duas da manhã quando se levantou da cadeira que o sustentava há mais de três horas e foi com dificuldade física que o fez. Naquele curto espaço de tempo em que ali esteve sentado,pareceu-lhe ter envelhecido uns anos , tais eram as dores sentidas quando , depois das despedidas feitas, caminhou até ao carro estacionado bem perto da casa de onde acabara de sair. Talvez tivessem sido os inúmeros cigarros fumados ou então fora a mistura de bebidas que fizera do jantar em diante , a verdade é que se sentia velho , muito velho mesmo. A par dessa incómoda sensação , uma terrível dor de cabeça mal o deixava raciocinar. Não obstante , lá alcançou o carro e conduziu  até casa sem qualquer sobressalto. Pelo menos , não estava o frio das duas noites anteriores , o que já não era mau de todo.
Percebeu mais tarde e mais uma vez as intermitências fracturantes que a sua vida tivera. Principalmente os amigos que deixou de ver sem que para tal encontrasse uma razão razoável , digamos assim. Acontece amiúde , sabia , mas com ele acontecera quase sempre , como uma norma , um padrão , do seu carácter. A estranheza , angustiante , era a da impossibilidade de remediar esse grande erro ( o tempo não volta atrás . É impossível recuperá-lo ! ) de ter deixado de ver as pessoas com quem um dia conviveu e de quem gostou. Algo dolorosa essa inexplicabilidade !


segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

domingo, 25 de dezembro de 2016

Natal

Uma brisa fria penteia-me os ombros descobertos que o lençol não consegue tapar , enquanto , em fundo , ouço Lhasa de Sela , trovadora americana , que em 2010 , vítima de cancro , morreu aos 37 anos e que descobri por acaso.

O Natal acabou de passar pelo rés-do-chão e depois disso subi até aos meus aposentos para um necessitado recolhimento , não com muito natal em mim porque esse tempo talvez já tenha passado , mas com um relativo aconchego na alma e algum calor no coração.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Música

De novo a música a encher-me a solidão de companhia. Vozes e sons de gente como nós que teve o dom de poder exprimir em voz cantada e em melodia a inquietude interior , que cada um de nós toma como sua em determinados momentos da vida.

Dúvidas


Tenho é que ter calma !
(Ninguém nos coarcta as palavras . Como o poderiam fazer numa terra livre?!)

Tenho é que ter calma , a calma suficiente para ouvir a voz que vem de dentro , acalmar o vulcão interior , esse que atiça os nervos e me excita , talvez de boa fé , porventura querendo proteger - me , ao querer afastar de mim o medo , o medo do outro e do que o outro pensa sobre mim .

Tenho é que ter calma , sim , a calma bastante para escutar o outro e perceber o que sente e me quer dizer. 

Domingo. Já não é cedo !

Tenho medo de me abrir , de dar a conhecer o verdadeiro eu que existe em mim.
Acontece - me , por vezes , ter a noção de serem as pessoas que me rodeiam que me impedem de falar , de exprimir o que vai dentro de mim , de mostrar quem sou verdadeiramente . Mas essa é , seguramente , uma crença falsa , uma ideia errada , um preconceito .

A existência é (uma coisa) bela! Poder exprimir o que sentimos e dizer , falando , como somos e quem somos é característica única da espécie humana e é uma coisa maravilhosa . Todos os animais (e as plantas à sua maneira ) comunicam entre si. Pelo cheiro , pelos movimentos do corpo , das patas , focinho , orelhas , olhos, dentes , todos eles comunicam. Mas nós , homens e mulheres , humanos , para além disso , falamos. Falamos e interpretamos o que as palavras , e como são ditas , querem dizer. Temos essa coisa (milagrosa e mágica) da voz audível e soletrada. Entendemos-nos , também , através e pelas palavras .


quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Um copo de Dão em Viseu

«Um copo de Dão em Viseu
Sob a sagaz moderação de Jorge Sobrado, decorreu ontem em Viseu um interessante debate sobre o lugar do vinho na Bíblia. Perante uma assistência atenta e bem humorada, segurando na mão copos de delicioso vinho do Dão, falou-se de vários aspectos que logo se impõem à nossa imaginação quanto pensamos no lugar do vinho na Bíblia – desde a embriaguez de Noé à transformação de água em vinho nas famosas bodas de Caná (não menos famosamente pintadas por Paolo Veronese, que se retratou a si próprio e ao seu colega de ofício, Tintoretto, como músicos na festa bíblica). E é claro que não pôde ficar ausente o vinho que o mistério da Eucaristia transforma em sangue de Cristo. Mas sobre este tema revelaram-se-nos algumas supresas…
O cristianismo é muitas vezes sentido por cristãos e não-cristãos como a religião do pão e do vinho. Mas não deixa de ser curioso pensarmos sobre o lugar por vezes impalpável do vinho no Novo Testamento, contrastando-o com a palpabilidade plena do pão. Basta dizer que a palavra «pão» («ártos», em grego) ocorre 97 vezes no Novo Testamento, ao passo que a palavra «vinho» (em grego, «oînos») ocorre apenas 34 vezes. Se lermos o primeiro livro do Novo Testamento, o Evangelho de Mateus, verificamos que «vinho» ocorre 4 vezes, ao passo que «pão» ocorre 21. Mais curioso ainda: 3 dessas 4 ocorrências no Evangelho de Mateus são no mesmo versículo (9:17), na frase de Jesus sobre o vinho novo/velho em odres novos/velhos. A 4ª ocorrência da palavra «vinho» é quando, já no calvário, é dada a Jesus a mistura de vinho com fel.
No Evangelho de Marcos, a situação é a mesma: a palavra «vinho» ocorre 4 vezes na frase sobre os odres (2:2) e novamente no calvário, quando dão a Jesus vinho misturado com mirra. Em Lucas, temos de novo os odres (5:37, 38), mas não temos bebidas forçadas na cena da crucificação. Há ainda duas referências a João Baptista como alguém que não bebe vinho (1:15; 7:33); e a palavra «oînos» (vinho) surge na receita da mezinha aplicada pelo Bom Samaritano nas feridas da vítima de assalto e espancamento. No Evangelho de João, por seu lado, a palavra «vinho» surge somente a propósito das bodas de Caná.
Quem está a ler estas anotações já se deu conta de uma circunstância intrigante: nos relatos da instituição da Eucaristia que lemos em Mateus, Marcos e Lucas (João não relata a instituição da Eucaristia), não aparece a palavra «vinho». Aparece explicitamente a palavra «pão». Mas não «vinho». É só indirectamente que somos informados da natureza do líquido que está no «cálice» (em grego, «potêrion») que Jesus levanta e afirma ser o seu sangue, quando nos 3 evangelhos ele diz que não provará do fruto da videira «até àquele dia em que o beber, novo, convosco no reino do meu Pai» (Mateus); ou «não bebo mais do fruto da videira até o beber, novo, no reino de Deus» (Marcos); ou «não bebo a partir de agora do fruto da videira até chegar o reino de Deus» (Lucas). A palavra para «fruto» é em todas estas frases um vocábulo anódino e abstrato («génnêma»: como que «coisa nascida» da videira). A palavra não nos sugere nem a beleza nem a suculência de uma uva. Muito menos a fragrância, o corpo e a macieza de um vinho do Dão.
No entanto, Jesus era tido como «bebedor de vinho» (em Lucas 7:34 a palavra é «oinopótês»), em contraste com João Baptista, que era totalmente abstémio. As pessoas que, como eu, se interessam pela história fascinante dos primeiros séculos do cristianismo sabem que, entre os muitos cristianismos inicialmente vigentes, havia formas de cristianismo que preconizavam, a par da total abstenção de sexo, a total abstenção do vinho. Isto - mesmo tendo em conta a paucidade desconcertante de ocorrências da palavra «vinho» nos evangelhos - parece-nos contraditório com a imagem de Jesus como «bebedor de vinho». Contudo, temos motivo para pensar que o primeiro cristianismo não teria sido lá muito enófilo se olharmos para a epistolografia de Paulo tida como autenticamente escrita pelo apóstolo, no seio da qual encontramos uma única ocorrência da palavra vinho, numa frase na qual os fãs do Dão ontem em Viseu não se reviram por aí além: «é bom não comer carne nem beber vinho» (Romanos 14:21). Esta é, pois, a única vez que, nas cartas autênticas de Paulo, encontramos a palavra «vinho». Nas cartas tidas como escritas por outras pessoas em nome de Paulo, lemos avisos contra a ingestão de vinho (Efésios 5:18; 1 Timóteo 3:8); em especial, numa frase pouco caridosa, as senhoras de mais idade são avisadas para não serem escravas do vinho (Tito 2:3).
Será que estes primeiros autores cristãos pensavam que o vinho fazia mal? Talvez não fosse isso: um destes autores recomenda ao seu destinatário que não beba só água, porque os seus problemas de estômago mitigar-se-iam se ele bebesse um pouco de vinho (1 Timóteo 5:23). O problema não era, nas suas cabeças, o facto de o vinho «fazer mal», mas antes de «fazer bem». Como o sexo, dá prazer. Portanto: Deus nos livre.
Seja como for, é claro a partir das palavras ditas por Jesus na última ceia que, no reino de Deus, haverá vinho. Vinho «novo».
Não sei qual é a vossa opinião, mas pessoalmente não gosto de vinho tinto «novo».
Ontem, no evento do vinho do Dão, pareceu-nos claro a todos que vinho «novo», como Jesus promete aos discípulos no Evangelho de Mateus, não é preferível a vinho cuidadosamente envelhecido graças à sabedoria enológica que vigora, em pleno século XXI, em terras do Dão . Portanto, antes do espiritual «século vindouro» que nos trará a ingestão celestial da «coisa nascida da videira, nova» (por alguma razão este líquido nem merece o nome de «vinho» na passagem do evangelho…), é aconselhável, enquanto cá andarmos, tirarmos o melhor partido possível do vinho criteriosamente envelhecido. Somente a bem do estômago, claro :)
(NOTA: esta interpretação humorística da palavra grega «kainón» em Mateus 26:29 não esgota as possibilidades de interpretação da sintaxe de frase, pelo que remeto, para uma consideração séria do problema, para a p. 145 da minha tradução dos Quatro Evangelhos.)
(na imagem: pormenor das Bodas de Caná de Paulo Veronese, onde vemos o próprio pintor e o seu colega Tintoretto retratados com instrumentistas)»

Frederico Lourenço - FB 4dez16

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Acima de tudo mostrar o amor

«Acima de tudo, mostrá-lo (o amor)
O termo inglês “negging” tem vindo a ser utilizado no âmbito de uma pseudo-ciência – de que há, ao que parece, alguns profissionais infamemente conhecidos – que consiste em sistematizar a psicologia daquilo que leva uma pessoa que não se sente atraída por alguém a deixar-se manipular sexualmente por esse alguém, mercê das técnicas de “negging” que esse alguém consegue empregar.
A questão ilumina o assédio constante de que tantas mulheres são alvo por parte de homens a quem assenta, em primeiro lugar, o termo “anormais”, depois “crápulas” e depois... escolham vocês.
Para um estudioso da Antiguidade Clássica como eu, este debate é pertinente devido à “evidência” que ressalta incessantemente na literatura grega e latina, de que as mulheres “existem” para ser assediadas e, a não ser que o consigam impedir de alguma forma, violadas. Quem se der ao trabalho de ler um texto como as Metamorfoses de Ovídio tem todo este ideário sintetizado de forma bastante aterradora, não obstante (como é óbvio) o extraordinário brilhantismo poético com que é expresso.
Ovídio baseou-se em parte num texto de um poeta grego anterior chamado Parténio, texto cujo título quero aqui traduzir (para efeitos deste post) por “Patologias Eróticas” (ἐρωτικὰ παθήματα), embora o pudéssemos traduzir também por “Sofrimentos de Amor”. Trata-se de um texto onde surgem, entre outras situações, exemplos de mulheres abusadas por parceiros sexuais cuja força física e psicológica lhes permite concretizar o abuso. Mas o que me interessa reter desta referência a Parténio é o tema da patologia erótica.
Voltando ao “negging”: está subjacente a esta técnica de assédio a ideia de que “a mulher típica” (?) reage com desinteresse à manifestação de atracção sincera por parte de um homem, achando porém “desafiante” um homem que lhe tira o tapete debaixo dos pés, fragilizando-a, pois, através da técnica do “negging”. No que consiste esta técnica? Consiste em dizer coisas vagamente agradáveis (“és loira, adoro mulheres loiras”) modalizadas de forma desagradável (“mas estás com um bocado de caspa, ou não?”). Esta mistura da carícia verbal aliada ao coice psicológico que visa atingir a auto-estima da vítima é, pois, o básico desse comportamento patológico.
Ora a questão seria facilmente arrumada na prateleira dos comportamentos anormais próprios de grunhos complexados se, no seu encalço, não arrastasse uma outra questão que, já fora do âmbito da patologia grave, não deixa de suscitar dúvidas em muit@s de nós.
E a questão é esta: é verdade que a melhor maneira de provocarmos o desinteresse da parte de alguém que nos interessa é mostrarmos sinceramente que estamos interessad@s? O homem que dá a entender à mulher amada que a acha a pessoa mais fascinante à face da terra não corre o risco de que ela o ache um cretino? Por outro lado, sentirmos da parte da pessoa que “queremos” que ela não nos quer não nos leva a querê-la ainda mais? Estou aqui a lançar perguntas meramente teóricas. Pois pela parte que me toca, sempre fui adepto convicto de mostrar sinceramente, de peito aberto, o que sinto; e sempre apreciei profundamente essa qualidade nos outros.
No entanto, como leitor de poesia antiga e como alguém que, embora não praticando já a arte da ficção narrativa, observa a vida com espírito de romancista, não posso deixar de me interessar por compreender a lógica das muitas patologias eróticas que a vida oferece à nossa análise. E pergunto-me, assim, se “negging” não será uma realidade aparentada com a fenomenologia a que já fiz aqui várias vezes referência: “só gosto de ti se não gostares de mim”.
Que é o reverso negativo da atitude saudável e infalivelmente propiciadora de felicidade recíproca, que é: “quanto mais gostares de mim, mais eu gosto de ti”.»

Frederico Lourenço - FaceB - 7dez2016

domingo, 4 de dezembro de 2016

Inacção

Atingido por um torpor domingueiro refugio-me na música que o spotify gratuitamente me oferece dando-me apenas ao esforço de escolher uma das muitas temáticas propostas , no caso a "Hora Acústica" , descobrindo músicas , cantores e grupos , na sua grande maioria para mim desconhecidos.
A música pode ser pacificadora e é de paz que preciso .

Estes últimos três meses têm sido interessantes pela descoberta de um eu atapetado pelo tempo mas por ele  , ao mesmo tempo , modificado. Contudo , esse processo, regenerador e revitalizante , foi deixando , como lastro , algum cansaço , o que em si não é mau , tem até pelo contrário um lado aprazível ,  quando se encontram condições propícias para descansar.
Assim foi o dia de hoje : de descanso. Começou com uma caminhada matinal a que se seguiram uns momentos entre os gatos e depois de almoço e da saborosa sesta continuou preguiçosamente entre a leitura e a televisão . Agora a música. Gente desconhecida para mim e jovem como Lily Allen , Shawn Mendes ou Dua Lipa e menos nova como Marisa Monte ou Norah Jones ou grupos como Imagine Dragons , The Lumineers Little Mix , entre outros nomes , têm - me acompanhado nestes minutos finais de um domingo remansoso

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Aspiração

Controla as tuas emoções !
Não mostres abertamente a tua alegria e sê modesto na tua tristeza.
Não sejas falso, cínico ou hipócrita.
A serenidade é um bom oceano para navegar

Episódios

Mal dobrei a esquina do edifício , avistei S. que estava num pequeno grupo com mais duas mulheres bem em frente à porta larga da entrada principal , que eu julgava ainda fechada. Na esquina do hall exterior , encostadas e em silêncio , estavam F. e A. , porventura refugiando-se uma na outra , enquanto mais ninguém aparecia. Indeciso , como muitas vezes acontece , lá optei por me acercar das duas mulheres silentes , cumprimentando-as afavelmente. Ultimamente , tem - me acontecido muito uma coisa engraçada e simultaneamente estranha : um minuto parece durar muito mais que os sessenta segundos que tem . Por isso , não sei avaliar muito bem quanto tempo estive junto daquelas duas almas simpáticas e suaves . Fiz uma  pergunta que já há uns dois ou três dias lhes tinha feito e , claro , obtive a mesma resposta : sim , somos ambas de Lisboa , resposta dada desta vez por F. mas logo de seguida secundada por A. , num tom que não me pareceu de enfado , que talvez eu merecesse , pela duplicação da demanda. Mas não , não se me afigurou que tivessem ficado aborrecidas.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Sim , a vida é uma dádiva das estrelas
20 de Novembro de 2016 - domingo

O dia começou chuvoso e tudo indica que continuará assim até ao seu fim. Sinto-me hoje um pouco estranho , o que penso que se deve à noite de ontem e à presença da F. . Fico quase sempre assim depois de estar com ela . Na grande maioria das vezes , quando estou na sua presença sinto uma espécie de tensão , o que é um pouco inquietante e tenuemente confrangedor porque me prende as palavras e me limita os movimentos.
- Tens um fraquinho por ela - disse-me Francisco enquanto mexeu as brasas da lareira.
Um fraquinho?!, interroguei-me , mas passado um bocado admiti que certamente o Francisco tinha razão.

Atenção !

Não atire palavras ao vento
ele as levará
você ficará sem elas e
ninguém as apanhará

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Viajar

É bom estar dentro do silêncio!
Parece que entramos dentro de uma cápsula do tempo em direcção aos mais longínquos destinos que a memória e os sentidos encontrarem. Mesmo sentados no nosso sofá de todos os dias podemos viajar. É uma forma bem económica de o fazer

domingo, 20 de novembro de 2016

"Não serás como a palha que o vento leva."

Notícia do Público de 4Jan2010 , por João Cortesão  - «Morreu a cantora Lhasa de Sela» (37 anos )


Tão repentinamente como surgiu também assim partiu: Lhasa de Sela, cantora e compositora nascida em Nova Iorque, mas profundamente influenciada pela cultura mexicana, faleceu no dia 1 de Janeiro deste ano, aos 37 anos de idade, de um cancro da mama, contra o qual lutava há 21 meses. Deixou pai, mãe, irmãos, sobrinhos, e um culto de fãs indefectíveis, reflectido no milhão de cópias que os seus três discos venderam.
Desde a primeira vez que a sua voz se ouviu em disco que Lhasa surgiu aos melómanos como um ser vindo de outro mundo. Do seu álbum de estreia, La Llorona, composto a meias com o magnífico músico Yves Desroisiers, constavam apenas baladas cambaleantes, que versavam mitos pagãos mexicanos, amores de faca e alguidar, o sangue, a morte e as cartas que trazem a fortuna e a desgraça e nos traçam o destino.

Era um disco centrado na guitarra acústica de Desroisiers, com apontamentos de acordeão e banjo, mas que estava longe de ser "bonitinho", muito por força da voz de Lhasa, que dominava - ou assombrava, se quisermos ser exactos - cada canção: possuidora de uma voz grave mas ampla, Lhasa tão depressa conseguia soar ébria como apaixonada como vingativa como sensual. "La Llorona" cantava os mais velhos dos assuntos e Lhasa cantava-os como se existisse desde sempre, como se aquelas canções estivessem ali, há séculos, à espera de serem ouvidas. Não parecia ter 26 anos: parecia ser mais velha que Chavela Vargas, a diva mexicana com quem na altura foi comparada. Podia ter uma voz de veludo, mas aquele veludo conhecia todo o tipo de nódoas.
Irrequietude natural
O êxito de "La Llorona" foi rápido e surpreendente, em particular tendo em conta que em 1997 o mundo não estava propriamente virado para canções acústicas cantadas em espanhol. Mas além das canções, a própria Lhasa contribuiu para o sucesso do disco: não só era tremendamente bonita como tinha igualmente uma história pessoal incomum que contribuiu, nesses dias pré-YouTube, para o mito de "mulher misteriosa" que sempre a seguiu.
Filha de pai mexicano e mãe americana-judia-libanesa, Lhasa não cresceu como a maior parte das raparigas. Os seus pais eram nómadas, e ela passou os primeiros anos de vida com eles e os irmãos on the road entre os Estados Unidos e o México. Todas as noites, em vez de ver televisão, os irmãos faziam um teatrinho ou cantavam. Isto marcou-a ao ponto de após a digressão de "La Llorona" se ter juntado a um circo em França.
A sua história de vida valeu-lhe o epíteto "cantora nómada", mas quem teve oportunidade de privar com ela tem a impressão de o nomadismo não se dever a uma qualquer mania aventureira, antes a uma irrequietude natural e à incapacidade de conviver com a indústria musical. Numa entrevista à Roots World, na altura do lançamento do seu segundo disco, "The Living Road", em 2003, Lhasa confessava que depois da digressão do primeiro disco abandonara tudo para ir para França porque se sentia "a morrer". "Fiz tudo menos rapar o cabelo e tornar-me freira", acrescentou. A vida no circo, rodeada de alguns dos irmãos, era simples e repleta de tarefas, o que lhe agradava: "Acordo todos os dias com a minha sobrinha a dizer-me que me ama", dizia, com candura.
"The Living Road" era um disco mais complexo, com guitarras, banjos, melódicas. Mesmo sendo um disco mais opulento, com arranjos imaculados, soava ainda a uma carroça a desconjuntar-se na beira de uma estrada poeirenta, e voltou a merecer os encómios da crítica. 
Vasco Sacramento, produtor musical, convidou então Lhasa para uma digressão em Portugal por alturas do seu segundo disco, "The Living Road", digressão que na altura acompanhámos. Sacramento disse ontem, numa nota à imprensa, que "Lhasa de Sela não estava interessada no estrelato, na fama ou no dinheiro". Acrescentou ainda que Lhasa "parecia que cantava apenas por imperativo de consciência, sem grandes preocupações com estratégia de mercado", antes de lembrar, num toque mais pessoal, que Lhasa lhe falava sempre do bacalhau que comera em Xabregas.
Intensidade assustadora
Lembramo-nos do bacalhau em Xabregas, mas acima de tudo confirmamos essa impressão de que Lhasa cantava apenas por imperativo de consciência. Lhasa revelou-se ao início uma mulher distante, sempre acompanhada dos seus cadernos, com dificuldade em posar para fotografias. Não gostava que lhe fizessem muitas perguntas e no entanto, uma vez ganha a sua confiança, percebia-se que a sua distância era uma timidez congénita. 
Tinha o hábito de ouvir mais que falar e observava tudo à sua volta com uma intensidade que podia ser assustadora. Sabia deixar-se aproximar (deixou-nos conversar com a sua mãe, em quem depositava extrema confiança), mas precisava do seu momento de isolamento: antes do concerto da Aula Magna arranjou um cantinho onde fazer ioga sem ser perturbada pela banda ou por jornalistas - só a mãe podia estar ali com ela. Era sem dúvida reservada e intensa e tão doce quanto, ao que nos pareceu, assustada.
O terceiro disco, "Lhasa", do ano passado, cantado em inglês, nunca foi devidamente promovido e já foi afectado pelas condições de saúde. Por esta altura já Lhasa colaborara com os Tindersticks e com Arthur H, cantor francês, e era um nome mais que firmado. Segundo os seus representantes, Lhasa, que só conseguia fazer o que queria, como queria e quando percebia o que verdadeiramente queria, tinha planos de fazer um disco com temas de Violeta Parra e Victor Jara.
A andarilha morreu. O seu site, Lhasadesela.com, abre com uma fotografia dela, de costas, o rosto encoberto pelo cabelo a esvoaçar ao vento. Em fundo há uma longa estrada. O salmo dizia: "Não serás como a palha que o vento leva." Lhasa teve a coragem de o ser, e foi maior por isso.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Vivências

16 de Novembro de 2016

Recostado no sofá da pequena biblioteca/escritório , onde passo largas horas do meu tempo , vou tentando sintetizar as emoções vividas durante o dia que começou relativamente cedo e ainda perdura neste momento ( 23H15) em que escrevo. O momento é de silêncio e de escuridão exterior .
Neste processo interior , estou acompanhado por cigarros implacavelmente assassinos , disfarçados de bons e voluntariosos amigos .

Pela manhã , na Antena 2 , ouvi , algo incompletamente , a história de um angolano - Adolfo Maria - ex - alto dirigente do MPLA , hoje escritor e que , durante um certo período de tempo da sua vida ( quase um ano ) , no decorrer da guerra civil pós-independência ( 1976 ) se viu forçado ao anonimato e à solidão. Ele estava , por essa altura , num lado diferente do do MPLA e isso obrigou - o a fugir , digamos assim , para não ser preso , torturado e/ou morto. Contudo, foi uma fuga peculiar , porque consistiu na verdade numa auto-reclusão , num apartamento exíguo , de onde muito raramente saía . Estava portanto preso numa espécie de cárcere compulsivo , confinado a um espaço apertado , em que só a ausência de guardas o fazia distinguir de uma verdadeira prisão , segundo ele próprio relata.Nesta circunstância peculiarmente difícil , usou da memória para ocupar o tempo , escrevendo.
Levavam-lhe os mantimentos necessários e ali se manteve até que os ânimos acalmaram e lhe permitiram sair de Angola.
Por estes dias - Novembro de 2016 - vê essa parte da sua vida , adaptada a uma peça teatral com o nome: "Um pássaro é mais do que a sua jaula" , que estreará na Casa do Coreto , Carnide , Lisboa.

Circunstâncias tão difíceis moldaram , seguramente , esta pessoa para sempre, Como bem mencionava o encenador da peça - Guilherme Mendonça - a grande maioria das pessoas não passa , no seu tempo de vida , por dificuldades desta grandeza que , além do mais , tiveram efeitos na história de um povo , no caso , o angolano. Para grande parte de nós há dificuldades sim mas não deste tipo.

À noite , na RTP1 ,  graças à box , vi o primeiro episódio da série HUMAN , realizada por
Yann Arthus-Bertrand , francês, repórter e fotógrafo ambientalista , que tem uma vasta obra publicada ,  sejam livros , reportagens em revistas de relevo mundial ou filmes sobre a natureza . Para esta série/filme/documentário , que também se encontra no Youtube (o autor cedeu as imagens , gratuitamente), andou por mais de 60 países , durante mais de dois anos recolhendo  mais de dois mil depoimentos de pessoas com uma característica comum: uma marcante história de vida.
Ficamos num silencioso espanto a ver as imagens da TV. Um fundo preto , aveludado , serve de cenário às declarações daqueles que passaram ( ou passam ) por situações de dor , angústia , perda , fome , guerra , doença ou outra de extrema dureza ou privação. A par destas mensagens comoventes , imagens lindíssimas deste planeta que habitamos .

Quer o relato ouvido pela manhã , na Antena2 , quer o episódio passado na RTP1 , deixaram-me a pensar que a minha condição de vida , que é  , felizmente , a de muitas pessoas , é boa , pacífica e de qualidade , tão distante daquelas que ouvi e vi relatadas , na rádio e na televisão . Não tenho por isso , não temos nós , os que têm casa , família , pão na mesa , cama sob tecto seguro , trabalho e recursos suficientes  , nem o direito , nem moral para queixas ou reclamações fúteis.

Angola

A SIC passou hoje uma reportagem sobre Angola,

Retrato de um país com muitos recursos naturais mas cheio de pobres , governados por um tiranete , sua família e amigos que se perpetuam no poder deixando mais de 70% da população com menos de dois dólares por dia

As escolas não têm as condições mínimas , os alunos que as frequentam têm fome , não de conhecimento mas de alimento , pelo que , mais de 50% deles abandonam precocemente os estudos . Se os pais não têm dinheiro para comprar comida , que dizer de livros, cadernos ou lápis para os filhos .

Boa parte da população vive em casas de chapa , em bairros da lata. Outra nem isso tem . Ao mesmo tempo , em Luanda , o arredamento de um apartamento pode chegar aos 5.000 euros por mês.

Não há água canalizada ( mais de 80% das casas) e mesmo o acesso a pontos de água potável é difícil  de conseguir. As estradas , de um modo geral , estão em péssimo estado . Ter cuidados médicos é uma miragem para grande parte das pessoas

O Bairro da Tchavola , arredores da cidade de Lubango ( antiga Sá da Bandeira, sul de Angola) foi arrasado para dar lugar a um caminho de ferro e as pessoas quase não tiveram direito a realojamento , vivendo em casas feitas de chapa ou em tendas.

Na Catumbela ( província de Benguela) os jovens não têm trabalho , logo não têm futuro , sendo que muitos, são pais muito cedo , perpetuando - se assim a pobreza e a falta de futuro.

Angola tem um elevadíssimo índice de mortalidade infantil.

País desigual , com 25 milhões de habitantes , dos quais , 20 milhões vivem em situação de pobreza. Ao mesmo tempo , Angola tem um dos maiores consumos de champagne per capita do mundo. Luanda tem sido reabilitada a um custo gigantesco e exorbitante enquanto nas ruas , o lixo está por todo o lado , a céu aberto , fedendo e infectando. A grande parte da população urbana em Angola vive em bairros de lata ( musseques )

Nestes bairros não há centros de saúde , escolas , hospitais , creches . Os jovens não têm educação adequada e sem planeamento familiar , têm , com se disse ,  muitos filhos . Pobres criando pobres e pobres viverão.

José Eduardo dos Santos  vai nomeando os filhos , família e amigos para cargos de poder , beneficiando poucos , prejudicando quase todos

Nos hospitais , falta tudo menos os doentes . A febre amarela e o paludismo ( malária) têm morto muitas pessoas sem piedade. Os medicamentos são vendidos no mercado negro não existindo onde devem existir: nos hospitais e centro de saúde

A malária , que é o que tem morto mais angolanos , tem terreno fértil para progredir: o lixo não é recolhido porque o governo não paga a quem o devia fazer e as habitações não têm saneamento básico .

Neste cenário de gritante desrespeito pela vida humana , as despesas militares têm aumentado  e as da saúde e educação são reduzidas.

Os dinheiros que vêm do exterior em auxílio de tanta carência, são desviados pelos responsáveis dos organismos públicos que têm responsabilidades de o gerir e distribuir pela população

Quase não há oposição politica , por medo da opressão dos governantes e da sua polícia.

98% das exportações devem-se ao petróleo. Com a queda do preço do crude , a economia angolana passou por momentos de aflição e desespero. Há falta de imensos bens essenciais e quando os há , os seus preços aumentaram para valores proibitivos , principalmente  para quem deles mais necessita.

Rafael Marques , jornalista , que já esteve preso ( 6 meses ) , continua a levantar a sua voz contra a corrupção existente no país , muita dela com origem na família do ditador , que há 37 anos está no poder.  Os diamantes constituem outro negócio rentável , desta feita controlado pelos generais do MPLA

Os orgãos de comunicação social , quer os públicos quer os privados , nomeadamente a televisão , são controlados pelo regime , dificultando a tomada de consciência pelos habitantes do que realmente se passa no país.

Um país que tem tudo para ser um lugar promissor , tem um regime político que aperreia os que nele hoje habitam , comprometendo seriamente o seu futuro


sábado, 12 de novembro de 2016

I'm your man

If you want a lover
I'll do anything you ask me to
And if you want another kind of love
I'll wear a mask for you
If you want a partner
Take my hand
Or if you want to strike me down in anger
Here I stand
I'm your man

If you want a boxer
I will step into the ring for you
And if you want a doctor
I'll examine every inch of you
If you want a driver
Climb inside
Or if you want to take me for a ride
You know you can
I'm your man


Ah, the moon's too bright
The chain's too tight
The beast won't go to sleep
I've been running through these promises to you
That I made and I could not keep
Ah but a man never got a woman back
Not by begging on his knees
Or I'd crawl to you baby
And I'd fall at your feet
And I'd howl at your beauty
Like a dog in heat
And I'd claw at your heart
And I'd tear at your sheet
I'd say please, please
I'm your man

And if you've got to sleep
A moment on the road
I will steer for you
And if you want to work the street alone
I'll disappear for you
If you want a father for your child
Or only want to walk with me a while
Across the sand
I'm your man

If you want a lover
I'll do anything that you ask me to
And if you want another kind of love
I'll wear a mask for you

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Fuocoammare, de Gianfranco Rosi: a rotina da vida ao lado da vala comum

(artigo de Francisco Louçã , no Público de 17Out16 )

Fuocoammare, ou Fogo no Mar, é simultaneamente uma melosa canção siciliana dedicada num programa de discos pedidos em Lampedusa, onde se desenrola a acção deste documentário de Gianfranco Rosi a que dá o título, e uma recordação de Maria sobre essa guerra mundial que lhe atormenta a memória.
Como os espectadores descobrirão, a vida prossegue placidamente em Lampedusa enquanto milhares de refugiados são resgatados das águas do Mediterrâneo, tantas vezes enganadoras e mais vezes ameaçadoras (“vamos ter vento de 30 nós”, diz o pai de Samuele). Desses refugiados sabemos pouco e nem vemos as condições em que vivem, não sabemos para onde vão, não conhecemos as suas histórias em detalhe, só o eco de uma récita da travessia pelo deserto até à Líbia, pelas mãos dos traficantes, presos e roubados, ou fugindo do ISIS, da morte e da miséria. Só sabemos como chegam.
E vemos, como se fosse do outro lado do mundo, a terra curta, mas tão deserta, onde os desembarcam. Lampedusa na noite de um miúdo de 12 anos tem árvores sonolentas, pássaros perdidos, esconderijos infantis, pedras nuas. Os pescadores prosseguem a faina, o mergulhador é a solidão a caminho da sua gruta, a mulher puxa os lençóis e arruma a cama, só o médico é chamado a ver os refugiados que chegam. Vê pela máquina, com a ecografia, vê os mortos, inspeciona as mãos dos que chegam, faz uma triagem entre desesperos. Ele sabe que tem que ajudar, que os desembarcados fazem parte da sua vida. Mas são outra vida.
O filme é um retrato de retratos paralelos e foi criticado por isso. Talvez na sua contenção Rosi queira deixar-nos o incómodo de estabelecermos o paralelo entre as nossas vidas, dos que vemos o Mediterrâneo ao longe e prosseguimos a nossa vida mais confortável, e o sofrimento desses que só viajam porque nada têm a perder e de quem até os nomes ignoramos. Os habitantes de Lampedusa, como se fossem o lado de cá, têm nomes, os que chegam do lado de lá não têm.
Vencedor do Festival de Berlim de 2016, este é um filme do nosso tempo. Porque é simples e conta histórias simples, pode ser visto como uma metáfora. Ou somente como uma tristeza e portanto como uma indignação.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Bob Dylan - Nobel da Literatura

Para estupefacção de muita gente ( minha inclusive ) foi hoje atribuído a Bob Dylan o Nobel da Literatura .

Roubei a Alexandra Pereira , "amiga" que tenho no FB mas que não conheço na realidade , as seguintes palavras publicadas num seu «post» de 13/10/2016 , hoje portanto :


«Nobel............ merecidíssimo para esse judeuzinho do Minnesota, descendente de ucranianos, lituanos e turcos fugidos ao anti-semitismo europeu, que adoptou metade do nome do poeta Dylan Thomas! Trovador mesmo! Não comparem com Cohen, Cohen é mais músico - as letras de Dylan são uma obra-prima. Vêm do inglês cantado lá dos dialectos do Middle English, leram o Chaucer (ah pois leram), atravessaram Shakespeare e as peças teatrais declamadas, leram o Beowulf e Wordsworth e Coleridge, nadaram o Atlântico, beberam no folk e no blues dos negros americanos, no gospel e no rock, nos irish celtas, no jazz, mas sobretudo na extraordinária lírica folk do Midwest profundo.... chegou a essa pérola anglo-saxónica refinada! Não é das composições musicais que nós estamos a falar, minha gente: é da pura letra e musicalidade da língua!! Poesia (em inglês) fenomenal.»


Por ignorância minha , não sei se a Alexandra tem ou não tem razão ( mas , não sei porquê , acho que sim...) . O que sei é que me deixou uma série de pistas para seguir...

terça-feira, 11 de outubro de 2016

O Sonho

O Sonho
Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma dêmos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
– Partimos. Vamos. Somos.
Sebastião da Gama, Pelo sonho é que vamos, 1953

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Trump 'vs' Clinton

Está na fase final a corrida à Casa Branca que se disputa entre o republicano Donald Trump e a democrata Hillary Clinton, dois fraquíssimos candidatos a líderes de uma das maiores potencias mundiais , senão mesmo a maior. 

Tanto quanto sei , uma grande parte da intelligentsia um pouco por todo o lado do mundo , está muito preocupada com a possibilidade de Trump poder vir a ser o próximo presidente dos EUA: inculto , arrogante , populista , xenófobo , são alguns dos adjectivos usados par o classificar. A verdade é que chegou até aqui  , sempre com elevados índices de popularidade interna e as sondagens recentes não lhe tiram a possibilidade de uma vitória eleitoral.

Reconhecendo nele muitas das características que normalmente se atribuem a um bronco , receio que , ainda assim , seja melhor que a oponente , a  falsa , dissimulada e hipócrita Hillary.

Tempos estranhos se avizinham mas isso nunca foi verdadeiramente uma novidade

Síria

Continua o drama humano entre aqueles que  vivem na Síria. Mostram-nos as TV's as imagens desoladoras de Alepo , cidade onde hoje ainda (sobre)vivem 250.000 pessoas. Parece impossível que haja pessoas que resistam entre destroços de prédios , onde tudo deve faltar , menos as bombas dos aviões russos , aliados de bashar el assad , ou os rockets da oposição rebelde .

segunda-feira, 11 de abril de 2016

21 poemas para o Dia Mundial da Poesia

Nuno Costa Santos - Observador - 21 de Março de 2016




Contas certas: são 21 poemas porque é a 21 de março que se celebra a poesia. Outros tantos poetas escolheram os seus textos favoritos e explicam porquê.






Escolhas livres feitas por poetas das mais diferentes vocações e dos mais variados apetites. Cada instinto perseguiu um registo. Há quem, na sua escolha, pretenda fixar em arquitectura literária superior a fugacidade da vida, há quem, também se fixando nesse desgaste, aproveite para a festejar (Ferreira Gullar, evocado pelo brasileiro Antonio Cicero), há quem se sinta confrontado por um poema-soco ou por um poema que, para falar de amor, traz a sombra da morte. Ou ainda por um poema que despoja o homem de pulsões que o diminuem.
São também convocados poemas (como o de Lawrence Ferlinghetti, escolhido por Tiago Gomes) que celebram o gosto perigoso em viver e outros que também relevam os aspectos técnicos – aqueles que, se bem cozinhados, conseguem criar a emoção poética que só a grande arte consegue atingir. E, aqui e ali, emerge a ironia, estratégia de sobrevivência de uma poesia que, se tremendamente grave, poderia parecer escusada.
Num poema de António Amaral Tavares, autor recém-descoberto por Renata Correia Botelho, diz-se: “Doutor há muito pouco tempo para a poesia”. Podemos vir com a conversa de circunstância, habitual nos salões e nas redes sociais: todos os dias são dias para a poesia. Não são, até porque há dias em que é preciso ir pagar o IRS. E por isso, já que existe um dia só consagrado ao género, que o aproveitemos para lermos e dizermos poemas, para celebrar a poesia como serena partilha, numa comunidade diversa.

Luís Filipe Castro Mendes

“Magnificat” de Álvaro de Campos

Cada poema é um encontro, no processo em que é escrito tanto como no processo em que é lido. Encontrei há muito tempo este poema e sei que de repente ele me veio cortar a respiração e ferir-me com a terrível consciência de que nunca poderemos sair do nosso próprio ser, nem pela vida nem pela morte. Cárcere do ser, li mais tarde no mesmo Álvaro de Campos. Mas o soco que o poema dá em nós (“e a dor dói como um soco”, Alexandre O’Neill) só o sentimos bem nesses momentos em que da ideia se passa ao espanto quase físico do encontro com uma verdade de nós que nós não sabíamos. O poeta é afinal aquele que sabe dar-nos de surpresa um soco no mais fundo do que somos. Para com isso aprendermos a ver melhor o esplendor do mundo.


Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!


Fernando Pessoa

Inês Fonseca Santos

“Passagem”, de Manuel António Pina

Escolho o poema que fecha a obra de Manuel António Pina, se é que tal é possível, um poema que feche seja o que for, em vez de abrir. E escolho-o porque, figurando como poema final, como derradeiro poema, aponta, logo no título, para a noção de “Passagem”, para esse movimento cíclico a que está condenado o poeta, o criador, «[a]gora que os deuses partiram». Esse eterno retorno às palavras que se situam «tão sem peso por cima do pensamento» é a maior celebração da poesia no que ela tem de possibilidade de fuga ao uso comum da linguagem e no modo como ela, a poesia, se continua a escrever (e inscrever) mesmo não tendo mais do que palavras para dizer o mundo. Dá-se ainda o caso de este poema me ser dedicado. Lembrá-lo hoje — e todos os dias — é o meu modo tosco de agradecer e retribuir a Pina.


Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?


mapina

Manuel Cintra

“Muriel”, de Ruy Belo

É, desde sempre, não só o meu poema de amor favorito em toda a literatura portuguesa (que eu conheça) como é, mais do que isso, o meu poema favorito. Acontece que o tema dominante no que escrevo é o amor, e dentro do amor, por razões muito pessoais e objectivas, o desencontro. Este poema fala de ambos, como a meu ver só o Ruy Belo soube fazer. Para além da música das palavras, como sempre incomparável, o Ruy consegue aqui uma emoção, uma intensa tristeza, uma maneira de ir ao encontro do amor tornando-o impossível que me comove sempre, e que se me entranha de cada vez que o leio, seja para mim, seja para outrem. Como sempre, a ferramenta certeira é, além disso, a morte. O Ruy utiliza a morte, seu tema obsessivo, tanto para falar de amor como para o que quer que seja. Ora fá-lo com uma profundidade e uma melancolia tais, que sempre, há trinta anos que leio este poema, ele renasce em mim, e põe-me a chorar por dentro. São razões muito físicas e emotivas, nada intelectuais.


Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava […]


[este é um excerto de “Muriel”. Ouça aqui o poema na íntegra:]




Francisco José Viegas

“Os Justos”, de Jorge Luis Borges

O poema “Os Justos”, de Jorge Luis Borges, resume a ideia de que há poemas que salvam a nossa vida. À medida que o tempo passa, que a morte se atravessa no caminho, que a memória exige esforço e sacrifícios cada vez mais pesados, a poesia parece transportar algum material de salvação. Não para a morte, física e real — mas para a vida, que falha tantas vezes. Não é uma solução nem um bálsamo; é um fragmento de beleza (e de alegria, e de serenidade, e de atenção) que busca a nossa perplexidade.




Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.


Jorge_Luis_Borges_1951,_by_Grete_Stern

Inês Lourenço

“Não só quem nos odeia ou nos inveja”, de Ricardo Reis

Nos tempos que correm, apetece saborear esta ode pessoana, enquanto desafiante e sabotadora dos actuais estilos de vida e de pensamento. Vão pela borda fora os empreendedorismos, o ter cada vez mais e melhores coisas, os hedonismos vários e até os monoteísmos, que tantas guerras sangrentas proporcionam, seguindo o poema um paganismo sadio e ético. Claro, que há a questão das influências, horacianas, epicuristas, estóicas ou heraclitianas. Mas os grandes poetas são intemporais. Dão-nos sempre capacidade acrescida de respiração e de aceder a uma total liberdade, anulando as contingências do mundo.


Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

João do Nascimento

“O pai morava no fim de um lugar”, de Manoel de Barros

Descobri a poesia de Manoel de Barros em 2001, e não foi preciso mais do que a leitura breve de alguns dos seus poemas para que me tocasse. A visão profunda que transpira na sua escrita dos elementos vulgares, tão quotidianos quanto imensos e desimportantes, é tão grande que ganha nos seus textos a dimensão harmoniosa daquilo a que alguns chamarão: alma.
Senhor do pormenor, em Manoel de Barros tudo é tão insignificante quanto grandioso, percepcionando-se a essência humana em objectos simples e banais misturados de forma imprópria, irónica, tocando-se a natureza, o lixo, os despojos do quotidiano e os lugares, de maneiras imprevisíveis e luminosas. Os rios caminham sobre latas e os alicates dormem em esteiras. Realidade só revelável pela voz da poesia.
Ainda que português, ou cidadão de outra qualquer nacionalidade, ao ler os textos tão intrinsecamente brasileiros de Manoel de Barros, o leitor percebe o que é isso de linguagem universal. O que é isso de poesia.


O pai morava no fim de um lugar.
Aqui é lacuna de gente – ele falou:
Só quase que tem bicho andorinha e árvore.
Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã.
Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de
suspensórios e ademanes.
Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam
caranguejos.
E era mesma a distância entre rãs e a relva.
A gente brincava com terra.
O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina.
Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas.
O doutor espantou as rolinhas.

João Luís Barreto Guimarães

“Musée des Beaux Arts”, de W. H. Auden


Porque encontro neste poema – para além de aspectos mais técnicos de oficina que me agradam profundamente, como por exemplo a métrica ou a dicção -, todo aquele sentido trágico da vida e do sofrimento que o acaso dos dias tantas vezes nos apresenta colado à comicidade. Tragédia e comédia, só aparentemente opostas. Alguém escreveu que a tragédia é somente comédia mal desenvolvida. E o facto deste poema interligar a mitologia grega com a pintura de Brueghel, numa ekkfrasis de tom quase coloquial, torna este poema moderno hoje como daqui a cem anos. A persona poética conversa com o leitor através de uma qualidade de verso assinalável, com vários estratos de leitura, o que faz com que o poema, aparentemente, não se esgote. É um texto de um grande grande poeta, dono de uma intelecção pensada e repensada. Imenso.


Acerca do sofrimento, nunca se enganaram
Os Velhos Mestres: quão bem entenderam
A condição humana; como está presente
Enquanto alguém se alimenta ou abre uma janela ou monotonamente segue a caminhar;
Como, enquanto os velhos esperam apaixonada e reverentemente
Pelo miraculoso nascimento, deve sempre haver
Crianças que não queriam especialmente que acontecesse, patinando
Num lago na orla da floresta:
Nunca esqueceram
Que até o mais terrível martírio deve seguir o seu curso,
Custe o que custar, a um canto, nalgum lugar descuidado
Onde os canídeos acorrem em suas vidas de cão, e o cavalo do torturador
Coça seu inocente traseiro por detrás de uma árvore.
No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo se afasta
Ociosamente do desastre; o lavrador poderá
Ter ouvido o splash, o grito desamparado,
Mas para ele não era um importante fracasso; o sol brilhou
Como soía sobre as pernas brancas que desapareceram na verde
Água; e o frágil e grandioso navio que deve ter avistado
Algo espantoso, um rapaz caindo do céu,
Tinha um destino para ir e afastou-se calmamente.


format, portrait;male;elderly;The, Stage;Playwright;Roles, &, Occupations;Personality;British;American;ES, BB, 9386;ES, P/AUDEN/WYSTAN, HUGH/BRITISH, POET,

Tiago Gomes

“Ocupamos a praia do Amor”, de Lawrence Ferlinghetti

Um poema sobre ocupantes, amantes e demais revolucionários. Do sobrevivente da geração beat, um poema que também pode ser uma celebração das maravilhosas praias portuguesas. Ferlinghetti, figura menos conhecida da geração beat, mas de importância fundamental como editor, por exemplo, do livro “Uivo” de Allen Ginsberg e fundador das importantíssimas livrarias City Lights em São Francisco, epicentro do movimento da beat generation. Lawrence Ferlinghetti, para mim, mestre da poesia do quotidiano, social e de uma simplicidade desarmante. A ler, muito actual. O autor cumpre 97 anos no dia 25 de março.


Ocupamos a praia do amor
entre bandolins de Picasso repletos de areiae patas de esfinge semi-enterradas
e papéis de piqueniquepatas de caranguejos mortose marcas de estrelas do mar

Ocupamos a praia do amor
entre sereias encalhadas
com seus bebés berrando e maridos calvos
e bichinhos de madeira feitos em casa
com colheres de gelados a fazer de pés
que não podem amar ou andar
excepto para comer
Ocupamos a orla do amor
seguros como só os ocupantes sabem ser
entre poças remanescentes
de maré salgada de sexo
e os suaves regatos de sémen
e balões flácidos enterrados
na carne macia da areia
E ainda rimos
e ainda corremos
e ainda nos deitamos
nos botões do amor
mas é mais profundo
e mais tarde
que pensamos
e tudo se gasta
e todas as nossas boias d’amor falham
E bebemos e afogamo-nos

Miguel-Manso

“O Autocarro”, de Leonard Cohen

Não sei explicar bem o porquê de escolher este e não outro. Na verdade podia ser outro. Mas este tem um sentido aventureiro que me agrada. Cumprir uma aventura sem sair da secretária.


Era o último passageiro do dia!
Estava sozinho no autocarro
feliz por estarem a gastar todo aquele dinheiro
só para me levarem pela oitava avenida acima.
Condutor! — gritei — somos só tu e eu esta noite
Vamos fugir desta grande cidade
para uma cidade mais pequena, mais de acordo com o coração
Vamos guiar através das piscinas de Miami Beach
tu no assento do condutor e eu vários assentos atrás
Mas nas cidades raciais trocaremos de lugar
para mostrar como te arranjaste no Norte
e vamos descobrir alguma pequena vila piscatória americana
na desconhecida Florida
e parar junto à areia
um enorme autocarro chamando sobre si as atenções
metálico, pintado, solitário
com matrícula de Nova York


GAND, GHENT, AFP,

Margarida Ferra

“O Canto da Chávena de Chá”, de Fiama Hasse Pais Brandão

Não é a primeira vez que repito este poema quando me pedem um. Gosto do modo como Fiama chama a poesia e a natureza para contracenarem além das deixas decoradas. Também porque sou uma leitora feliz diante do lirismo temperado com ironia. E apesar de duvidar muito, ainda acho que, a servir para alguma coisa, a poesia estará aqui para nos trazer à mesa novos sentidos, chamando os nossos, vivos, e outras explicações. Como esta de que a porcelana e o osso estão ligadas além da mão que segura a chávena e de que as palavras de um poema encontram o lugar certo no universo para uma mesa de verga (imagino-a desfiar-se, a chávena de chá, agora mal equilibrada, sobre o tampo).


Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.


Fiama1

Carlos Alberto Machado

“Tenho de construir hoje esta planície”, de R. Lino

Em cada livro de poemas aprende-se de novo a respirar (como a um corpo amante): o prazer de dizer o poema como nosso, deixarmos de existir entre a sua respiração e a nossa qualquer diferença.
A poesia de R. Lino concentra poderosamente a força e a violência que advêm da “geografia” e do esgaçar da memória, numa serena e delicada mutação em palavras – implodem e espalham a sua força pelo interior, sem o estrondear do definitivo (mortal).


Tenho de construir hoje esta planície.
Separo as ruas, entrego os lados
aos quatro pontos cardeais, faço
do largo um sítio, abro as portas
de um castelo já sem uso.
Subo pelas escadas da torre
até ao cimo dos telhados
uma mancha meio branca
por entre os tapetes de pedra.
Em cima, fica a rua de cima
um gato passa entre as duas
em baixo, fica a rua de baixo.
Escolho as varandas ao redor
há um rio que me leva como um barco
nesse cantar aqui cantado. Hoje tenho
de construir esta planície
as estevas das fronteiras
uma mudança de países
o outro lado retalhado
por vacas e por verdes trabalhados.
Do lado do cemitério
a vida é talvez mais selvagem
os coelhos e as perdizes
e o que nasce sem se plantar.

Rui Almeida

“Nem nos defende a ausência”, de José Augusto Seabra

Dos 21 poetas, nascidos entre 1930 e 1941, incluídos por António Ramos Rosa no volume que constitui a quarta série das ‘Líricas Portuguesas’ (1969), José Augusto Seabra (1937-2004) é, tanto quanto sei, aquele que nunca teve a sua obra poética reunida ou com uma ampla antologia. E todo o sentido faria, pois trata-se de alguém que, nos 14 livros de poemas, publicados entre 1961 e 2002, reflecte um percurso pessoal riquíssimo, que vai desde a experiência do exílio, por causa da oposição ao Estado Novo, até à carreira diplomática que o levou a vários países como embaixador, passando pela experiência académica, em Paris, que o revela como um dos mais importantes estudiosos de Fernando Pessoa, ou pela profunda reflexão crítica da relação da cultura com a cidadania. O poema escolhido é do seu primeiro livro e revela já a marca da «lúcida perscrutação de um espaço interior», apontada por Ramos Rosa, que acompanhará toda a sua obra.


Nem nos defende a ausência:
é o reverso.
Sabemos todos já bem a ciência
da traição que se oculta a cada verso.
Nem nos salva a desculpa
de anoitecer, poetas:
por cada mea culpa,
apontam-nos a morte noutras setas.
Ficar nem chega. Ou ir
ou sepultar-nos.
Foge-nos o tempo já de decidir
Sequer suicidar-nos.
A bem ou mal, poetas.
Liberdade
só esta que sorri por entre as frestas
hesitante do peso da verdade.

Leonardo

“IX”, do “Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”, Mário Cesariny

Por (e para) altura do nosso tempo imediatista, que, por milagre ou paradoxo, consegue estagnar nas coisas mais velhas do mundo, surgir-nos-ia Cesariny. Os seus versos, aqui, não deixam de me lembrar uma cabeça de que se derramasse uma cascata. À superfície temos a imprevisibilidade dos lados para que se derrama, o ritmo estrondoso das águas a bater em si próprias. Depois, são as imagens que se riem ruidosamente de nós, «homens só até aos joelhos», «lindas lindas raparigas só até ao pescoço», «poetas até à plume», riem-se que permitamos que nos fechem o caminho para a «noite Cadillac obsceno». E quem diria que voltaríamos ao tempo (ou nunca saímos?) em que «o joelho está tão barato»? Já no fundo de tanto riso, acredita-se, há-de haver alguma amargura. E, portanto, esperança. Pelo que a maravilha da poesia está aqui: quando as palavras se conseguem alimentar de um tempo e de um espaço posteriores, corroendo-os. Muito mais estará nestes que pisamos, em que se diz muito pouco, ou em que aquilo que se pode dizer tem os seus respectivos estágios de afogamento.


no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno
e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história de amor só até ao pescoço
e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma – ora aí está –
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato


www.omarona.blogspot. com Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006)

Cláudia R. Sampaio

“Homens que são como lugares mal situados”, de Daniel Faria

Poema que confirma o génio de Daniel Faria e de uma maturidade assombrosa para um jovem poeta. Revelador da sua visão mística e visceral, é ainda de um perfeito domínio formal aliado a uma poesia que ilumina, numa incessante busca e contemplação e numa serena exaltação dos mistérios do homem, intensificando-os, deixando-os no lugar.


Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Pedro Mexia

“A de Sempre, Toda Ela”, de Paul Éluard

Lembro-me do tempo em que comecei a ler seriamente poesia, e em que «a poesia» se identificava quase por completo com este poema de Paul Éluard (traduzido por António Ramos Rosa): aspiração, celebração, invenção, espanto. Comecei por encontrar uma tradução de Hölderlin, clássico-romântico, poeta de grandes exaltações e grandes odes, mas logo depois descobri Éluard, mais acessível, mais contemporâneo, um dos surrealistas franceses, talvez o maior poeta francês do seu tempo. E até encontrar um estilo que fosse mais ou menos meu, este era o estilo eu imitava: a de um intimismo comovido, reiterativo, agradecido, poemas sobre a grande alegria de ter ou não ter, a candura de esperar, a inocência de conhecer. Mas Eliot refreou-me essa tendência, tal como os disfóricos Hardy e Larkin, e Álvaro de Campos, e a vida também. De modo que hoje vejo Éluard como uma recordação de um momento em que a poesia era uma evidência, uma omnipresença. Já não acredito nisso, mas estou grato por essa ficção de juventude


Se eu vos disser: «tudo abandonei»
É porque ela não é a do meu corpo,
Eu nunca me gabei,
Não é verdade
E a bruma de fundo em que me movo
Não sabe nunca se eu passei.
O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos
Sou eu o único a falar deles,
O único a ser cingido
Por esse espelho tão nulo em que o ar circula através de mim
E o ar tem um rosto, um rosto amado,
Um rosto amante, o teu rosto,
A ti que não tens nome e que os outros ignoram,
O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim,
Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te
E o sangue espalhado nos melhores momentos,
O sangue da generosidade
Transporta-te com delícias.
Canto a grande alegria de te cantar,
A grande alegria de te ter ou te não ter,
A candura de te esperar, a inocência de te conhecer,
Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e a ignorância,
Que suprimes a ausência e que me pões no mundo,
Eu canto por cantar, amo-te para cantar
O mistério em que o amor me cria e se liberta.
Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu próprio.


Paul_Éluard_circa_1930

Antonio Cicero

“Anoitecer em Outubro”, de Ferreira Gullar

Observe-se uma característica curiosa desse poema. Ele evoca a transitoriedade da vida humana, porém não é depressivo. É que o poema celebra esse momento particular da vida, logo, celebra a vida, mesmo reconhecendo sua finitude. O poema é um monumento a esse momento efêmero da vida, momento mais valioso ainda até mesmo em virtude de sua efemeridade. “Efêmero” é o que dura um dia: e o poema colhe esse dia: “carpe diem”, como se diz em latim.


A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira
Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier

Renata Correia Botelho

“Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça”, de António Amaral Tavares

Era-me, até há poucas semanas, desconhecido o seu nome: António Amaral Tavares. Nunca lera nada dele, não me soava sequer familiar. Cheguei à sua poesia depois de o saber vencedor, no final de 2015, do Prémio Nacional de Poesia Diógenes, atribuído pela revista Cão Celeste. Foi dos encontros mais impressionantes que vivi. Um estrondo que nos fica a latejar, impiedoso, entre os dedos e o coração. Despojado de astúcias poéticas, cru e dorido como a noite. E, no fim das palavras, como se à noite não se seguisse mais nada.


Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça
um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de Agosto de 2011
não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a acabar
e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo
e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz
como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.
Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim
o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas
doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois
quero dizer-lhe que há pessoas muito pobres que querem
o meu rim esquerdo doutor o mundo não é perfeito
e não me diga para lhe contar tudo como a um padre
eu não quero morrer outra vez essa frase fá-lo muito feio.
Acredite que vi gente morrer porque era maior que o corpo
tenho a impressão que o corpo não sabe o que tem dentro
acredite que consigo fundir uma lâmpada só com o olhar
já fundi muitas lâmpadas só com o olhar
e que vi um anjo atravessar os muros de um hospício
rasante e belo como uma garça.
Doutor há muito pouco tempo para a poesia.
Isto que lhe digo é verdade todos os dias doutor.


a amaral tavares

José Anjos

“Como?”, de Vasco Gato

Poema absoluto do Vasco Gato sobre o mistério da sublimação e do seu maior ofício: o gesto. o gesto de colher, de receber na medida certa da intenção (a nossa e a das próprias coisas); o gesto que desaparece para dar lugar ao fruto; o gesto de ter escrito— o “mover de mão” —; o poema — gesto e fruto ao mesmo tempo; o gesto de ter acabado de o ler pela primeira vez; o gesto de repetição; a pergunta — gesto de empreender a percepção do que ainda não existe; a espera — gesto do tempo; o tempo — gesto de Deus.


colher
dos ramos altos
sem saltar
o fruto sereno
da tua passagem
— como?


vasco gato

Carlos Bessa

“Desculpas não faltam”, de José Miguel Silva

Entre os muitos poemas de que gosto escolho “Desculpas não faltam” (do livro Serém, 24 de Março. Averno, 2011), de José Miguel Silva, pelo tom e pelo modo como, em poucos versos, se mostra que a poesia que realmente importa seduz, emociona e deslumbra, podendo mesmo brincar prosaicamente com topos e temas clássicos e transfigurar, com algum humor, pequenos aspectos do quotidiano, que ganham assim outra claridade.


Uma casa junto ao Vouga,
rio de água suficiente,
onde apenas se mergulha
até à cintura, a pequena horta
de Virgílio, o amor robustecido
por nenhuma esperança
e tantos livros para ler
– que desculpa vou agora dar
para não ser feliz?


silvajm_foto

João Rios

“Ao lado”, de Joaquim Castro Caldas

Verso a verso o poema entranhou-se como corpo de pássaro sobre a toalha de mesa. Do seu voo restam ainda cores de incêndio e a mais genuína arte de reeducar o silêncio.


havia tantas coisas
que eu te queria dizer
se não fosse o abismo
de te perder num afago
de te ter do outro lado
do medo à minha beira
havia tantas coisas
que eu te queria dizer
se não fosse o amor
que há noites ao teu lado
em que me dói não sei
onde é que a distância ai

Rui Cóias

“The Hollow Men”, de T.S. Eliot (excerto)

Ler e pensar este poema de Eliot é como escolher o fim de um mundo, o início de um tempo agonizante, acompanhar uma mão que vai esculpindo, com o seu rigor, crueza formal e limpidez absolutamente inebriantes, as lamentações de ideais perdidos do primeiro quartel do século XX, que são, na sua essência, como que uma estrela crepuscular na história que nos dirige através do desmoronamento e da ambiguidade sombria.
A sua imagem permite-nos a rememoração enigmática, como se andássemos ao longo de um vale vazio (hollow valley) atormentados pelas cinzas da esperança, da nossa, e do mundo, enquanto, mesmo por isso, ouvimos para sempre os seus versos na voz entrecortada de Marlon Brando, entre as sombras, da selva, do Apocalypse.


Nós somos os homens vazios
Somos os homens de palha
Apoiados uns nos outros
A parte da cabeça cheia de palha. Ai
As nossas vozes foram secas e quando
Juntos sussurramos
São serenas e sem sentido
Como vento em erva seca
Ou pés de ratos sobre vidro partido
Na secura da nossa cave
Molde sem forma, tonalidade sem cor,
Força paralisada, gesto sem movimento;
Os que cruzaram
Com os olhos certeiros, para o outro reino da morte
Lembram-se de nós – quem sabe – não de
Violentas almas perdidas, mas somente
De homens vazios
Homens de palha.


Thomas_Stearns_Eliot_by_Lady_Ottoline_Morrell_(1934)


Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.