quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Um copo de Dão em Viseu

«Um copo de Dão em Viseu
Sob a sagaz moderação de Jorge Sobrado, decorreu ontem em Viseu um interessante debate sobre o lugar do vinho na Bíblia. Perante uma assistência atenta e bem humorada, segurando na mão copos de delicioso vinho do Dão, falou-se de vários aspectos que logo se impõem à nossa imaginação quanto pensamos no lugar do vinho na Bíblia – desde a embriaguez de Noé à transformação de água em vinho nas famosas bodas de Caná (não menos famosamente pintadas por Paolo Veronese, que se retratou a si próprio e ao seu colega de ofício, Tintoretto, como músicos na festa bíblica). E é claro que não pôde ficar ausente o vinho que o mistério da Eucaristia transforma em sangue de Cristo. Mas sobre este tema revelaram-se-nos algumas supresas…
O cristianismo é muitas vezes sentido por cristãos e não-cristãos como a religião do pão e do vinho. Mas não deixa de ser curioso pensarmos sobre o lugar por vezes impalpável do vinho no Novo Testamento, contrastando-o com a palpabilidade plena do pão. Basta dizer que a palavra «pão» («ártos», em grego) ocorre 97 vezes no Novo Testamento, ao passo que a palavra «vinho» (em grego, «oînos») ocorre apenas 34 vezes. Se lermos o primeiro livro do Novo Testamento, o Evangelho de Mateus, verificamos que «vinho» ocorre 4 vezes, ao passo que «pão» ocorre 21. Mais curioso ainda: 3 dessas 4 ocorrências no Evangelho de Mateus são no mesmo versículo (9:17), na frase de Jesus sobre o vinho novo/velho em odres novos/velhos. A 4ª ocorrência da palavra «vinho» é quando, já no calvário, é dada a Jesus a mistura de vinho com fel.
No Evangelho de Marcos, a situação é a mesma: a palavra «vinho» ocorre 4 vezes na frase sobre os odres (2:2) e novamente no calvário, quando dão a Jesus vinho misturado com mirra. Em Lucas, temos de novo os odres (5:37, 38), mas não temos bebidas forçadas na cena da crucificação. Há ainda duas referências a João Baptista como alguém que não bebe vinho (1:15; 7:33); e a palavra «oînos» (vinho) surge na receita da mezinha aplicada pelo Bom Samaritano nas feridas da vítima de assalto e espancamento. No Evangelho de João, por seu lado, a palavra «vinho» surge somente a propósito das bodas de Caná.
Quem está a ler estas anotações já se deu conta de uma circunstância intrigante: nos relatos da instituição da Eucaristia que lemos em Mateus, Marcos e Lucas (João não relata a instituição da Eucaristia), não aparece a palavra «vinho». Aparece explicitamente a palavra «pão». Mas não «vinho». É só indirectamente que somos informados da natureza do líquido que está no «cálice» (em grego, «potêrion») que Jesus levanta e afirma ser o seu sangue, quando nos 3 evangelhos ele diz que não provará do fruto da videira «até àquele dia em que o beber, novo, convosco no reino do meu Pai» (Mateus); ou «não bebo mais do fruto da videira até o beber, novo, no reino de Deus» (Marcos); ou «não bebo a partir de agora do fruto da videira até chegar o reino de Deus» (Lucas). A palavra para «fruto» é em todas estas frases um vocábulo anódino e abstrato («génnêma»: como que «coisa nascida» da videira). A palavra não nos sugere nem a beleza nem a suculência de uma uva. Muito menos a fragrância, o corpo e a macieza de um vinho do Dão.
No entanto, Jesus era tido como «bebedor de vinho» (em Lucas 7:34 a palavra é «oinopótês»), em contraste com João Baptista, que era totalmente abstémio. As pessoas que, como eu, se interessam pela história fascinante dos primeiros séculos do cristianismo sabem que, entre os muitos cristianismos inicialmente vigentes, havia formas de cristianismo que preconizavam, a par da total abstenção de sexo, a total abstenção do vinho. Isto - mesmo tendo em conta a paucidade desconcertante de ocorrências da palavra «vinho» nos evangelhos - parece-nos contraditório com a imagem de Jesus como «bebedor de vinho». Contudo, temos motivo para pensar que o primeiro cristianismo não teria sido lá muito enófilo se olharmos para a epistolografia de Paulo tida como autenticamente escrita pelo apóstolo, no seio da qual encontramos uma única ocorrência da palavra vinho, numa frase na qual os fãs do Dão ontem em Viseu não se reviram por aí além: «é bom não comer carne nem beber vinho» (Romanos 14:21). Esta é, pois, a única vez que, nas cartas autênticas de Paulo, encontramos a palavra «vinho». Nas cartas tidas como escritas por outras pessoas em nome de Paulo, lemos avisos contra a ingestão de vinho (Efésios 5:18; 1 Timóteo 3:8); em especial, numa frase pouco caridosa, as senhoras de mais idade são avisadas para não serem escravas do vinho (Tito 2:3).
Será que estes primeiros autores cristãos pensavam que o vinho fazia mal? Talvez não fosse isso: um destes autores recomenda ao seu destinatário que não beba só água, porque os seus problemas de estômago mitigar-se-iam se ele bebesse um pouco de vinho (1 Timóteo 5:23). O problema não era, nas suas cabeças, o facto de o vinho «fazer mal», mas antes de «fazer bem». Como o sexo, dá prazer. Portanto: Deus nos livre.
Seja como for, é claro a partir das palavras ditas por Jesus na última ceia que, no reino de Deus, haverá vinho. Vinho «novo».
Não sei qual é a vossa opinião, mas pessoalmente não gosto de vinho tinto «novo».
Ontem, no evento do vinho do Dão, pareceu-nos claro a todos que vinho «novo», como Jesus promete aos discípulos no Evangelho de Mateus, não é preferível a vinho cuidadosamente envelhecido graças à sabedoria enológica que vigora, em pleno século XXI, em terras do Dão . Portanto, antes do espiritual «século vindouro» que nos trará a ingestão celestial da «coisa nascida da videira, nova» (por alguma razão este líquido nem merece o nome de «vinho» na passagem do evangelho…), é aconselhável, enquanto cá andarmos, tirarmos o melhor partido possível do vinho criteriosamente envelhecido. Somente a bem do estômago, claro :)
(NOTA: esta interpretação humorística da palavra grega «kainón» em Mateus 26:29 não esgota as possibilidades de interpretação da sintaxe de frase, pelo que remeto, para uma consideração séria do problema, para a p. 145 da minha tradução dos Quatro Evangelhos.)
(na imagem: pormenor das Bodas de Caná de Paulo Veronese, onde vemos o próprio pintor e o seu colega Tintoretto retratados com instrumentistas)»

Frederico Lourenço - FB 4dez16

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